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PESSOAS & PROFISSÕES - Vivian, uma conservadora e restauradora carioca! Parte III

Chegamos à parte final da entrevista com a Vivian Paccico. A parte 1 está aqui, e a 2 aqui. Veremos um pouco da rotina de trabalho de uma conservadora da Casa de Rui Barbosa!

Como você aplica os elementos que vimos no seu dia-a-dia, na sua rotina? Nas suas decisões?

No trabalho, a gente nunca toma a decisão sozinho. A gente tá sempre conversando, trocando, nunca ninguém pega e faz, da cabeça, sem conversar com a chefia, com o colega.

Quais os principais acervos que vocês tem?
Rui Barbosa, a nossa cereja do bolo. Tem a parte artística, estética, artes visuais dos escritores. Obras de arte feita por pessoas que ficaram mais famosas pela escrita.Tem muito mobiliário, que faz parte do Arquivo Museu de Literatura Brasileira. Um caráter especial, já que é um arquivo que recebe também obras tridimensionais. Tem o acervo da Biblioteca São Clemente, que basicamente engloba todos os outros escritores. Entra principalmente o Plínio Doyle, acho que é a segunda maior coleção aqui. E tem o arquivo histórico institucional do museu.


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Plínio Doyle (1906-2000), advogado e bibliófilo brasileiro. Entre outros, Plínio ficou famoso por organizar o "sabadoyle", encontro com velhos amigos. Fonte.

Ou seja, é muita coisa.
Muita coisa. A gente não trata do mobiliário do museu, nem do acervo tridimensional. Claro que quando vem, por exemplo, uma caixa ou algum material afim com o que a gente trabalha, a gente orienta, ou até faz. Mas, num geral, quem faz são os conservadores do museu. Tem museólogos e conservadores lá. Eles têm até um mini laboratório. Uma reserva técnica recheada. Até porque a gente não teria perna pra cuidar do acervo do museu também.

Como é o procedimento, mais ou menos, geral quando você recebe uma obra nova? Quais são as etapas?
Começa com ficha de entrada e documentação. Você pode até fazer documentação fotográfica, dependendo do que for, porque às vezes demanda um antes e depois. Até pra você provar que não inventou. Uma professora, na faculdade, contava sempre uma história. Ela restaurou um quadro e devolveu pro dono. E ele falou: “Mas essa pessoa não tava sentada na pintura. Você sentou ele”. E foi uma doideira, ela não achava o registro fotográfico... por sorte, ela tinha e conseguiu provar: “Aqui a foto do quadro antes. Sempre esteve sentado”.

Gente, a pessoa redefiniu o próprio quadro. Justamente por isso, você gosta mais de trabalhar com as obras [risos].


Tem que ter um perfil muito good vibes pra conseguir trabalhar e abstrair essas coisas. Eu não consigo. Mas a gente entra com a documentação escrita, registro fotográfico. Dentro do registro escrito, a gente já tá pensando na obra. Enquanto a gente tá fazendo o diagnóstico e mapeando o que tem de problema, a gente já tá pensando no tratamento e já tá conversando sobre o que vai fazer, ou não, na obra. Tem coisa que a gente acaba tendo que devolver... compor menos tratamento que a gente gostaria de dar... sem mão de obra pra fazer, ou uma coisa muito complicada; uma obra muito acessada, vamos fazer o mínimo pra consolidar, e devolver. Ou sinaliza a necessidade e deixa pra fazer no futuro. Tem um limite do que consegue fazer num momento, do que pode fazer depois. Isso tudo a gente define na hora da ficha. Claro, no meio do caminho, muita coisa muda. Você acaba optando por outros tratamentos, e, às vezes, não tratar. Tem preservação, conservação, restauração. São coisas do mesmo espectro, mas em graus diferentes. O restauro seria intervenção na materialidade da obra mesmo. Às vezes você bate o olho e fala: “Essa tinta aqui não parece solúvel, na proposta colocamos banho”..., mas ainda bem que tem os testes [risos].

Essa é uma grande lição. Aí vocês fazem a ficha, tem um diagnóstico... qual o próximo passo? Seguir com as etapas de...
De tratamento. Que, às vezes, vai se limitar à higienização. Não tem como delimitar.

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Laboratório de conservação e restauro da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Fonte.

Então, apesar de ter uma fundamentação técnica, a análise de vocês é altamente interpretativa.
Você pode até generalizar, por alto, certas partes do tratamento, mas cada caso é um caso. Às vezes você pega um livro e uma folha, no meio, tá completamente degradada. O resto do livro impecável. Porque, no processo de confecção, aquela folha foi premiada com alguma sujidade, contaminação. Por maior o controle que você tenha... climático, e toda a preservação, não tem como prever.

É um trabalho que não entra na rotina nunca, né? Vocês têm que avaliar tudo como se fosse a primeira vez.
Ah, exatamente. Não é porque você tratou uma obra que ela não vai voltar, dali a 5 anos, com outro problema pra ser tratado. Claro, você tenta minimizar isso, justamente, usando produto de qualidade, fazendo intervenções conscientes, mas nem tudo tá dentro do nosso controle. Várias coisas que saem daqui acabam voltando. Não é a maioria, mas algumas. Eu mesma tava mexendo nessas fichas antigas e tô encontrando várias obras que, dentro desse período de dez anos, já estiveram aqui duas vezes. É “ah, meu deus, então alguém fez alguma besteira”? Não necessariamente. Vai ver a pessoa tratou, fez uma mini intervenção, resolveu que “não vamos mexer nisso agora porque a costura tá bem firme, consolidada”. E dali a 5 anos, a costura rompe. Porque a própria linha degradou... a obra seguiu o tempo dela e teve que voltar pra fazer uma intervenção novamente. Então nisso a importância das fichas. Com uma ficha bem feita, bem retratada, você sabe exatamente se fez. “Voltou porque a costura não foi refeita na primeira vez, não teve necessidade, agora teve”.
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Ficha diagnóstico da Biblioteca Nacional. Fonte.

É um prontuário mesmo, né?

É um prontuário. E tem que ser acessado. O meu mestrado é nisso. O assunto vai ser a trajetória da preservação na coleção Rui Barbosa. Desde a preservação que o Rui Barbosa aplicava nos livros dele, os banhos químicos que ele dava... Não é da cabeça dele. Mesmo que fosse, ele devia ter mil livros que explicam por que fazer cada uma das etapas. É o que eu tô tentando provar.

Mas ele fazia, então? Já tinha um processo na época?
Sim. Na verdade, tinha um funcionário pra cuidar dos livros. Um zelador. Fazia rotina de limpeza e higienização, redistribuição de naftalina nas estantes, abertura e fechamento, movimentação dos livros na estante, pra não acumularem poeira. Tinha uma rotina de manutenção.

E tem registro disso?
Tem. Carta. Depoimento. Na década de 70, teve o projeto Memória de Rui, a filha do Rui ainda era viva... o próprio Antonio Ventura, mordomo dele, zelador... inclusive fez várias das notas com que tô trabalhando. Ele tava muito próximo daquela coleção. Tem como provar que ele fazia. Já foi documentado. Eu tô tentando reunir essas informações e fazer elas terem um contexto. Dar algum sentido. Uma coisa é você colocar, no meio de um texto: “O Rui adorava os livros dele, botava naftalina”. Aí eu tentar explicar essa informação e contextualizar, de acordo com a conservação. Li diversas menções que, por si só, na verdade, às vezes, é até anedótico... Como é mestrado profissional, o produto vai ser uma base de dados que possa fazer uma busca. Chegou aqui o livro, vou olhar na base e saber se já foi tratado.

Hum.
Uma obra que eu tratei puxou essa pesquisa. A água não penetrava nas folhas. De jeito nenhum. O papel tava impermeável. Não é comum. Nas primeiras folhas até entrava. O bloco central, principalmente... não entravam. E eu: “Que coisa esquisita!”. Fui procurar; conforme fui pesquisando, descobri que ele dava banho com certos produtos com barra oleosa, aquilo impermeabilizava a folha. De certa forma, era bom, porque evitava certas deformações. Tinha um objetivo. Ele não fez aquilo ali por achismo. Encontra na literatura da época. Eram tratamentos aplicados, mas tem reflexos hoje em dia. Se eu tivesse conhecimento disso antes, não teria dado um banho. Teria feito mínima intervenção. Outro procedimento. Talvez até uma desacidificação por contato... outras coisas que não envolvam esse tipo de ação, né?

E aí, o que aconteceu com o livro?
Eu restaurei. Aos trancos e barrancos. O mais legal é que, agora, vendo as fichas, em vários dos livros do Rui Barbosa, encontro certas anotações do tipo... “diversos banhos!”. Tenho ali, pra mim, um indício, que já passaram por situações similares, né? “Banho com água quente, álcool, diversos banhos”. Cara, foi o que aconteceu comigo! Às vezes ela não teve o insight, mas anotou. Pra mim, já é um indício. Porque eu posso chegar na obra e ver: “tem as características parecidas”. Posso acabar chegando à conclusão de que também foi uma dessas sortudas que passou pelo banho na lata, como o Antonio fala. A fatídica “quarentena na lata”. Mergulhavam os livros em querosene, uma loucura. E deixavam fechado, depois, numa lata de Flandres. De certa forma, pode ter contribuído pro livro estar lá até hoje, mas tá muito ácido, com problemas estruturais sérios. E eu não tô aqui pra criticar. Até porque, na época, não tem como julgar o que é que se tinha de conhecimento científico. Não posso querer impor o que eu sei hoje naquela época. Dentro do que era sabido, estava muito certo. Ele via um foco de infestação. Ele tinha que tratar aquilo. Como? O que se tava fazendo na época era gás Clayton. Tava na moda. Você vedava a casa toda, jogava o gás, rezava e esperava matar os bichinhos. Sendo bem minimalista na explicação. Certas coisas eram muito dispendiosas. Você gastava muito material. Então era uma forma que conseguia ter de controle, que tinha segurança de botar um livro, no meio daquela coleção maravilhosa, de 30 e tantos mil volumes, e saber que não vai ficar tudo contaminado! Porque biblioteca, na verdade, é um programa de índio, você tá comprando um negócio que vai te dar dor de cabeça e você não para de comprar. Pelo contrário: no final da vida, ele arrematava livro em leilão. Já velho! Não era só pelo conteúdo. Ele falava que era, mas não. Eu fui pesquisando e tem anotação assim: “Maior biblioteca do mundo!”. Mas... ele não se considerava colecionador. “Bibliófilo”? Nunca! “Eram minhas ferramentas de trabalho”. Curiosamente, achei uma ficha dele preenchida, pra se cadastrar num grupo de bibliófilos na França... então... acho que ele não tava tão certo, né? [risos]


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Rui Barbosa em sua biblioteca. Fonte.

Uma pergunta sobre material. Existe um contraste de preço e acessibilidade de material entre o Brasil e outros lugares. Como você vê isso?
Desesperador [risos]. A gente tem total capacidade de ter os mesmos materiais com o preço acessível, aqui. É considerado luxo. Porque é super valorizado, só. Você consegue o mesmo produto fora, com as mesmas aplicações, tudo, mais barato, e a demanda não é pequena. Não é dizer que “não tem restaurador no Brasil”. Tem. A gente fica tendo que catar livro, coisa em loja de dentista, de médico, de químicos. Você não tem acesso a um químico restaurador. Você pode contar nos dedos os biólogos restauradores no Brasil. Você fala o nome, todo mundo sabe: “Ah, conheço”, “já liguei pra ele”. É escasso. A gente precisa desse apoio científico. Mas é considerado luxo. É isso que encarece.

E o que você acha que poderia ser feito para resolver essa situação?
Primeiro, o reconhecimento da profissão. Se a gente tem uma profissão consolidada, não passa mais a ser luxo. Não é um hobby de dona de casa. Que vai chegar no final de semana, vai fazer scrapbooking ou restauração. Acho que é isso que as pessoas pensam. Até hoje só tem uma loja que fixou. A Casa do Restaurador. Claro, tem a parte da importação, mas importa em poucas quantidades, então tudo fica muito caro.

Coisas que nem precisaria importar, né?
Não, não precisaria. Tem aqui. Pesquisando, a gente consegue encontrar, mas é um trabalho de agulha em palheiro. Quantas espátulas eu não tive que comprar, genéricas, pra você descobrir que uma delas vale a pena?

Última pergunta. Quais seriam as suas idéias, o seu ideal para conservação e restauro, daqui pra frente? Não só na sua vida, mas o que você gostaria que acontecesse?
Queria que tivesse mais acesso à parte científica. Que não fosse uma coisa tão complexa ou acadêmica. Que a gente conseguisse, por exemplo, ter acesso a um biólogo um químico pra trabalhar. E financiamento. Que não tem mesmo. É muito difícil você falar pros governantes: “a gente precisa desse material pra cuidar desse papel”. É cultural. Seria ideal, se essa cultura fosse um pouquinho rompida e a gente pudesse ter acesso a laboratórios, fazer as análises que a gente precisa... no caso, por exemplo, daquela obra... eu acho que o problema foi o tratamento do Rui Barbosa, mas não tenho como provar sem testes. Como faço? Tem um monte de micro empecilhos.

Entendi. E você acha que o campo é mais fácil em outros lugares?
Com certeza. Absoluta. A menor dúvida. Eu sigo os fóruns de outros lugares, dos Estados Unidos. Lá também não é uma profissão consolidada. É uma coisa mais da rede de contatos mesmo. Até porque a maioria das instituições tem financiamento particular. O financiamento público é muito pequeno. Então eles formaram uma rede de apoio enorme. É invejável. Às vezes, eu fico com vontade de botar o livro da minha pequisa embaixo do braço e ir lá pedir pra fazerem uns testes pra mim. Aqui no Brasil, isso é muito burocrático. Se tiver que publicar, tudo tem que estar documentado. É uma burocracia necessária até. A gente tá vivendo isso agora: vendo as fichas antigas e coisas assim, tem muita dúvida, muitas perguntas surgem porque não se responde nas próprias documentações. É necessário, mas é um empecilho. A sensação que eu tenho é que a gente tá numa área muito solitária. Apesar de ser interdisciplinar, é muito complicado você fazer essas trocas. A gente não tem uma base tão boa. Poderia ser muito melhor.

Para saber mais:
OLIVEIRA, J.B. de, VIGIANO, D.M., CELESTINO, E.J.M., O laboratório de conservação e restauro como condição necessária à finalidade institucional em acervos públicos. Anais eletrônicos. 7o Congresso nacional de Arquivologia, 2016, p.733-747. Disponível online em: http://racin.arquivologiauepb.com.br/edicoes/v4_nesp/racin_v4_nesp_artigo_0733-0747.pdf. Acesso em 23 de agosto de 2019.

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