Oi pessoal, dando continuidade à nossa coluna de Pessoas e Profissões, hoje abordamos uma área pouco familiar à maioria de nós: a conservação e o restauro, em especial aqui no Rio de Janeiro. A Vivian Paccico, de 32 anos, se formou em Conservação e Restauro pela Estácio de Sá, em 2009, e já acumulou muitas visões e histórias ao longo desses dez anos de trajetória!
A idéia de abordar essa área em especial veio da sua visibilidade ainda incipiente, da sua dimensão interdisciplinar, e, claro, das percepções sobre como escolher uma profissão e redefini-la durante o percurso :) Por conta da extensão da conversa, essa entrevista foi dividida em 3 partes. Essa é a primeira.
Vivian Paccico, nossa entrevistada da vez :) Foto de acervo pessoal.
Vivian, como você escolheu um curso que, naquela época, tinha zero visibilidade?Hoje já não tem muita. Naquela época, era pior ainda. Foi uma novela. Eu saí do 2o grau sem a menor idéia do que queria fazer. Sempre mexi com computador, gostava muito de design, mas nada me apetecia, assim... “quero fazer isso”. Minha mãe me matriculou num curso para concursos públicos. Fiquei um ano estudando. Sem a menor vontade. Eu falava: “mãe, não adianta. Eu vou participar das aulas, vou fazer as provas, vou passar e não vou fazer. Consigo dinheiro de outra forma”. Tudo pra provar um ponto pra mamãe, né? Conclusão: fiz as provas, passei em concursos, não entrei em nenhum...esperava, às vezes, passar o prazo pra mostrar que passei. Depois da milésima idéia, resolvi fazer arquitetura, mas também não tava muito segura... Em 2006, ainda no processo de algumas provas... adoro essa história e vou contar exatamente como aconteceu. Vi um filme... até hoje, não lembro o nome, com o Freddie Prinze Jr., que tinha uma restauradora! Falei: “A mulher está trabalhando com arte, que eu sou apaixonada, dentro de um laboratório! É isso!”. Taca-lhe a procurar. E eu só achava cursinho técnico. Falei: “Bom, se for mandar essa idéia pra minha mãe, tenho que chegar com um portfólio completo. Vai ser isso, em tal lugar, tal coisa”. Então eu e meu namorado na época... a gente ficou enlouquecido procurando, porque eu decidi alguma coisa da minha vida e ele falou: “Então vai ser isso! Pelo amor de deus!” [risos]. Ninguém aguentava mais. Por acaso, achei esse curso da Estácio. Tive que pesquisar se poderia valer como graduação, porque tinha que convencer a minha mãe de que era uma faculdade!
Uhum.
Só tinha curso noturno. Ela deu um surto. Falou: “Não vai! Praça Onze, de noite?!”. Não sei o que aconteceu, conspiração do universo - dois dias depois, entrei no site e tinha turma abrindo de manhã. Falei: “Chegou o meu momento, é a minha hora de brilhar, os humilhados serão exaltados!”. Fui lá, falei com a mamãe... depois de muita insistência, ela topou. No começo, consegui uma bolsa. Não era integral, mas dava uma ajuda, então foi assim que me formei: trabalhando desde o primeiro semestre, na área, já.
Onde você trabalhou?
Ministério do Exército, um ano, como estágio voluntário. E o Arquivo da Cidade cedia as obras pra gente tratar na faculdade, então eu ficava em tempo integral. Na parte da manhã eram as aulas e de tarde a gente ficava restaurando. Trabalhei com a documentação dos alunos ilustres na Faculdade Nacional de Direito. O acervo era maravilhoso!
Como é um acervo de alunos ilustres? O que envolve?
Todo tipo de documentação, que, teoricamente, no final do curso, tinha que devolver, mas... a prova de história de Vinícius de Moraes, identidade da Clarice Lispector... Eram cerca de duzentos alunos, que eles consideram “a turma dos ilustres”. Quando acabou, saí já direto prum escritório. Fiquei lá, trabalhando como digitadora, durante alguns meses. Pagava bem, em comparação com o que eu recebia antes. Cheguei a cogitar ficar mais tempo... mas aí apareceu uma oportunidade no IPHAN. Isso foi em 2008. Fiquei até 2013. Em certos períodos, tive Aperj e IPHAN. Eram mais de 12 horas de trabalho por dia. Meu almoço era um sanduíche no busão. Foram uns dois anos da minha vida trabalhando mais tempo do que eu dormia [risos]. Mas não teria feito de outra forma. Foi uma experiência incrível. Até o final da graduação, continuei no IPHAN. Fiz uns voluntários na Estácio. Cheguei a trabalhar com umas outras coisas, mas nada oficial. Nunca faltou projeto. Ainda mais pra quem trabalha com papel.

Clarice Lispector (à época, Gurgel Valente), aluna ilustre da FND! Fonte.
Como foi a escolha pela área de papel?Entrei querendo fazer escultura e estuque. Logo que abriu... tiraram essa matéria da grade. Pensei duas vezes: “o que é que eu vou fazer aqui?”. Só que, nesse primeiro semestre, a gente teve contato com papel. A professora deu um documento histórico e falou: “vamos higienizar”. Primeira aula, a gente já estava com o acervo na mão. Foi muito impacto. A gente achou que fosse ser uma coisa muito mais teórica, até conseguir fazer algo de fato, e foi justamente o contrário. Papel me conquistou, porque é um resultado muito imediato: você dá o banho, você vê. Tem mais a ver com o meu perfil. Então, dali, fiquei direto. Cheguei a fazer as oficinas, algumas especializações em fotografia; depois de papel, foi o meu foco. No IPHAN, como conservadora, e, depois, coordenadora de umo projeto na parte de fotografia. O maior tempo da minha vida foi na área de Encadernação... vinham com muitos álbuns, né? E no Aperj, peguei uma documentação muito bacana de pena alternativa.
Que legal! Como era isso?
Era a coleção Presidência de província*... Você encontrava de tudo. Desde costuras bem-feitas, você via que a pessoa tinha algum conhecimento, até coisas completamente absurdas, a gente tinha que mapear aquela costura! Foi muito legal, mas muito doido, ao mesmo tempo.
Depois do IPHAN, como você fez?
Eu estava com a perspectiva de ficar desempregada mesmo. Aquele pânico. Chegou num ponto em que falei: “Com 3 meses pra acabar o projeto, preciso pagar a minha casa; e agora, como é que vou fazer? Preciso pagar as minhas contas”. Eu já estava morando sozinha... Comecei a mandar currículo pra tudo. Me mandaram um email com a bolsa da casa de Rui. Aí eu fiz prova pro mestrado do IPHAN, e pra casa de Rui. Passei nos dois. Em 2011, entrei na Casa de Rui e fiquei até 2013. 2014, eu passei no concurso pra cá.
Como foi quando você passou no concurso?
Você acabou de me lembrar de um detalhe. Quando eu terminei a bolsa daqui, tinha acabado de ser convidada pra ser coordenadora no IPHAN. Em agosto, recebi uma proposta que queria me convencer a aceitar outra vaga. Mas acabou me desestimulando a tentar o concurso pra cá. Só que eu já tinha pago. Falei: “quer saber? Vou decidir no dia se vou ou não”. Inclusive, fui pro Rock in Rio. Vi o show do Muse. Vi o show da Florence, maravilhoso, incrível. Cheguei em casa rouca, sem falar, 5 horas da manhã. Deitei e falei assim: “Se eu acordar até meio dia, eu vou fazer a prova”. Não estudei! Meu namorado, na época, até falou: “Não bota despertador então. Deixa o destino resolver”. Onze e meia da manhã, eu acordei. Aí liguei pra uma amiga, combinei com ela. Fomos juntas. Acabou que eu passei [risos]! Fiz a prova sem pretensão nenhuma. Não abri pra olhar, o dia que saiu o gabarito. Fui trabalhar. Quando cheguei, tava todo mundo comemorando! Já tinham feito planilha com a pontuação! Aí, pronto: entrei em parafuso. [risos]. Na prova prática, eu tava muito nervosa. Tirei uma nota minimamente aceitável.

Rui Barbosa casualmente apoiado em alguns livros. Fonte.
Nossa!
Tem toda uma parte que eu esqueci de falar! Trabalho particular. Mesmo trabalhando 12 horas por dia... não cobria todas as dívidas. Nunca fiquei sem emprego, porém... também não paga tão bem assim [risos]. Então uma amiga minha da faculdade, depois que formou, montou um ateliê. Ela ficava com a parte de pintura, eu ajudava com a parte de papel; às vezes, uma ajudava a outra, dependendo do que fosse. Um ateliê, no caso, na casa dela, e na minha era muito precário, uma mesinha com tecidos, pra fazer as coisas. A primeira coisa, assim que eu soube que eu passei: me desfiz de tudo. A melhor coisa, nesse sentido, foi não ter que me submeter a certas coisas que não desejo pra ninguém. Não recomendo, inclusive [risos].
Mas que tipo de cliente vinha pra você?
Coisas grandes, até. No fim das contas, era muito mais fácil lidar com pessoa física do que com empresas. Tinha dia de eu sentar no chão e chorar.
E você recebia muito calote?
Nunca recebi calote. Claro, quando era particular, a pessoa dava uma choradinha no preço, mas nunca senti que “o meu trabalho não é valorizado”. Essa parte do cliente maluco era um problema. Mas trabalhei com muita coisa legal. Fiz muita foto, muito negativo. Teve projeto em que precisei de auxílio e eu contratava a minha irmã pra me ajudar. Ela fez treinamento de limpeza de negativo. Chega lá em casa, não vai no quarto dos fundos. Tem trauma! [risos]
A entrevista continua aqui!
* Para uma compreensão melhor do que foi a Presidência de Província, vale ver Oliveira, 2015.
OLIVEIRA, C.E.F. de, Entre o local e o provincial: os Conselhos Gerais de Província e as Câmaras Municipais, São Paulo e Minas Gerais (1828-1834), Almanack, Guarulhos, no.09, 2015, pp.92-102. Disponível online em: http://www.scielo.br/pdf/alm/n9/2236-4633-alm-9-00092.pdf. Acesso em 10 de agosto de 2019.
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