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A Morte não é uma Opção para Corpos sem Juízo

À época dos protestos do George Floyd, fiquei pensando no que poderia falar. Concluí que, melhor do que a minha própria fala, era combinar o contexto e os assuntos com outras vozes. O artigo de hoje é do sociólogo e pesquisador Guilherme Marcondes.


Jup do Bairro - Corpo sem juízo


No Brasil, pessoas trans e travestis têm uma expectativa de vida em torno de 35 anos de idade, enquanto a expectativa de vida para brasileiros(as/xs) brancos/as, em geral, é, em média, de 76 anos e três meses[1]. No que se refere à população negra, esta tem 2,7 mais chances de morrer por causas violentas, relativamente à população branca[2]. Em um ano em que o mundo passa pela pandemia da Covid-19, sabemos, ainda, que a população negra, no Brasil e nos Estados Unidos, tem sido a mais vitimada em virtude da doença causada pelo novo coronavírus[3]. Enquanto isso, no campo político brasileiro, e mesmo no norte americano, assistimos é, sem disfarces, à continuidade de um projeto iniciado no século XVI, quando começou o processo colonial.

A despeito da abolição jurídica da escravização de seres humanos ter ocorrido, no Brasil, há 132 anos, no campo das políticas públicas a impressão é, muitas vezes, de “dois passos à frente e dois para trás”, como versa a máxima popular. Os dados acima mencionados são prova disso. Como cinco séculos atrás, hoje os mesmos corpos vêm sendo estigmatizados, depauperados e assassinados. Corpos estes tomados, pelas classes dominantes, como merecedores da morte que lhes cerca. Não à toa, recentemente, uma influenciadora digital ganhou mais seguidores em uma rede social após desferir falas que defendiam o racismo como um comportamento natural[4]. E, ainda, quando um líder religioso, de matriz evangélica, incita uma campanha de boicote a um ser humano e a uma marca de produtos de beleza, em virtude de ser contrário ao reconhecimento da paternidade trans em sua propaganda para o dia dos pais[5]. Estes são apenas alguns entre tantos exemplos que, infelizmente, poderiam ser mencionados, como a morte de uma criança de cinco anos ao cair de um prédio de luxo graças ao descuido da antiga empregadora de sua mãe[6] ou, ainda, o entregador agredido por policiais[7], semanas após revoltas tomarem as ruas nos Estados Unidos e ao redor do mundo por conta do assassinado de George Floyd pelas mãos da polícia[8].

A morte, efetivamente, chega para todos os seres que habitam a Terra; todavia, para alguns ela chega antes do que para outros - leia-se: homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros, com capital e, em discurso, religiosos. Há corpos considerados descartáveis, matáveis, como define Achille Mbembe (2018) através do conceito de necropolítica. Os corpos que não se enquadram nos padrões definidos, ainda, durante o processo colonial são, de fato, compreendidos como inimigos e merecedores de morte. Corpos sem juízo, como define Jup do Bairro na música que abre este pequeno texto, afinal, não seguem os padrões impostos por uma sociedade machista, racista, transfóbica, homofóbica e elitista.

Achille Mbembé : « L'insurrection se fera par l'éducation » - Le Point

O filósofo Achille Membe. Fonte.

A história, no entanto, comprova que, a despeito de todo o processo de morte executado pelo projeto colonial, os corpos sem juízo, considerados abjetos e descartáveis, têm projetado outras possibilidades de sociedade, buscando vida, resistindo em meio aos corpos com juízo que lhes buscam exterminar. Mesmo não sendo uma versão popularizada, autores como Clóvis Moura, em seu Rebeliões da Senzala: Quilombos, Insurreições, Guerrilhas ([1959] 2014), nos comprovam que a resistência e a busca pela vida em meio à morte foi uma constante da população negra escravizada no país – contrariamente à história oficial e oficiosa, que insiste em dizer que pessoas negras no Brasil, quando escravizadas, o foram por serem primitivas e que lhes aprazia o masoquismo de seus colonizadores, supostamente não resistindo à sua escravização.

Jup do Bairro, cantora trans↔negra, em 2020, em plena pandemia da Covid-19, trouxe ao público seu álbum Corpo sem Juízo, que já vinha sendo planejado e contou com uma vaquinha virtual para a sua execução. Em meio ao caos humanitário, político, econômico, de saúde que tanto o coronavírus quanto os projetos políticos (ainda com traços coloniais) têm imposto à população brasileira, Jup do Bairro traz sete músicas em um álbum manifesto: Transgressão; O que pode um corpo sem juízo?; Pelo amor de Deize; All you need is love; O corre; Luta por mim; e Corpo sem juízo. As sete músicas retratam a vida de uma pessoa negra e trans num país em que a sua vida não parece importar ao Estado. Ainda assim, Jup do Bairro não traz apenas constatações sobre a situação dos corpos marginalizados, a cantora e compositora lança palavras/projetos que visam a desconstrução dos padrões normativos que vêm sendo impostos à/pela sociedade e causado o extermínio das populações negra e trans.

O que pode um Corpo Sem Juízo? | Kickante

A cantora Jup do Bairro.

Paul Gilroy (2001) nos ensina sobre os trânsitos e experiências que constituíram/constituem o atlântico negro. Destarte, sendo a diáspora negra marcada, seja aqui ou alhures, pela experiência da escravização, a memória deste processo e a experiência do racismo fundam política e culturalmente a identidade de uma população que vem, a partir de um emaranhado de vivências racializadas, transgredindo a lógica da modernidade ocidental [9]. Jup do Bairro, creio, é parte deste atlântico negro. Se Gilroy nos traz referências mais centradas nos Estados Unidos, podemos atualizar sua lista e incluir a cantora brasileira que, como Linn da Quebrada e Ventura Profana, em suas músicas e performances nos desvelam os crimes da colonialidade que, não obstante sua atualidade, nos indicam outras saídas. Engana-se quem pensa que essas cantoras apenas nos trazem entretenimento.

 Recentemente, uma rede social teve como campanha de grande aderência mundial a publicação de um quadrado preto, a fim de, teoricamente, demarcar a importância de pessoas negras e da preservação de suas vidas. Entretanto, o que ocorreu efetivamente foi o apagamento contundente das imagens de pessoas negras (tanto pelo protagonismo, que acabou sendo de não-negros, quanto por terem sido substituídas por quadrados). Na contramão desse cenário, Jup do Bairro, a partir de usa localização na estrutura desta sociedade, nos traz um álbum repleto de ensinamentos. Luta por mim, com participação de Mulambo, é incisiva quando questiona ações em meio digital que supostamente buscam a mudança da sociedade, mas que ao fim e ao cabo em nada, de fato, contribuem para uma transformação da estrutura social. 

O que pode o seu corpo? é a última estrofe de uma das músicas de Corpo Sem Juízo; uma pergunta nevrálgica justamente porque pode ser compreendida como propulsora. Com ela, Jup do Bairro nos convida ao movimento. Corpo sem Juízo é corpo em ação. Trata-se mesmo de um álbum fundamental pela sonoridade e, como aqui focalizo, por suas letras, pois trazem ensinamentos que vão em contraposição a um modelo societário moderno. Todavia, já está comprovado, seja pelos obituários dos últimos cinco séculos, bem como pelo atual contexto pandêmico, que esta modernidade tão aclamada é também a derrocada da dita humanidade. Os corpos sem juízo, vilipendiados pelo processo de acumulação do capital, marginalizados por sua racialização, sentenciados por seus não enquadramentos nas lógicas sexuais e religiosas das normativas ocidentais, antes e hoje não estão passivos frente aos abusos: a morte não foi e não é o destino que esses corpos planejam. Eles seguem firmes, resistindo e transformando a sociedade. O trabalho de Jup do Bairro é uma prova cabal disso.


Guilherme Marcondes é pós-doutorando (com bolsa PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS/UECE). Doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Foi Coordenador de Pesquisa e Memória do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBrac) e assistente de pesquisa no projeto Difusão e Educação Patrimonial do Acervo Histórico do CPDOC/FGV. Atualmente, é pesquisador associado ao Núcleo de Sociologia da Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUSC/UFRJ) e ao GRUA - Grupo de Reconhecimento de Universos Artísticos/Audiovisuais (CNPq), além de ser um dos editores associados da Horizontes ao Sul.

 

Referências:

DO BAIRRO, Jup. O que pode um corpo sem juízo? In: Corpo Sem Juízo, 2020.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos,  2001 [1993].

MARCONDES, Guilherme. Anticorpos para o combate ao vírus colonial: algumas ideias através da arte. Rio de Janeiro: Horizontes ao Sul, 2020. Disponível em: <https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/29/ANTICORPOS-PARA-O-COMBATE-AO-VIRUS-COLONIAL-ALGUMAS-IDEIAS-ATRAVES-DA-ARTE>.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: Quilombos, Insurreições, Guerrilhas (2014 [1959]).


[8] Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52868252>. Acesso em 30 de julho de 2020.

[9] A discussão acerca da modernidade ocidental e seus processos na divisão e regramento do mundo, são pormenorizados em: Anticorpos para o combate ao vírus colonial: algumas ideias a partir da arte (MARCONDES, 2020). Disponível em: <https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/29/ANTICORPOS-PARA-O-COMBATE-AO-VIRUS-COLONIAL-ALGUMAS-IDEIAS-ATRAVES-DA-ARTE>. Acesso em 30 de julho de 2020.


Comentários

  1. Texto muito bom e necessário! Indo conhecer mais do trabalho de Jup do Bairro! :)

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