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Seção Clara em Neve - Conforto em termos de pandemia

Esse ano, aqui no Trama, a idéia era conseguir estabelecer uma continuidade mais firme entre as postagens - tirar os projetos do papel e colocar aqui, no melhor estilo "ótimo inimigo do bom". Mal sabíamos nós todos que 2020 guardava muitas cartas na manga...

Com os adventos do último mês, foi difícil pensar em como equilibrar o princípio O Bêbado e A Equilibrista, que diz que o show tem que continuar, com uma abordagem de assuntos condizente. Fiquei um tempão matutando. E aí pensei na seção Clara em Neve - coisas leves, mas firmes, num momento atípico (onde até os vulcões do Pacífico estão em erupção).

Então, hoje, comecei pensando como seria legal falar sobre conforto. Um conceito aparentemente simples, mas que ressurgiu nesse contexto em que estamos passando (na medida do possível) por uma revisão geral dos nossos quesitos... ainda mais quando, para quem tem podido ficar em casa, parece que é o grande momento para finalmente encontrar Buda, virar um novo Nobel de filosofia e ainda ler os 7 volumes do Em Busca do Tempo Perdido*. De preferência, tudo ao mesmo tempo... e com a roupa toda limpa, é claro.

Eu nunca tinha pensado a sério sobre conforto. Não antes de 2017, quando fiz as entrevistas finais para a tese de doutorado, que defenderia no final daquele ano. Mas as entrevistadas, sim. Eu pesquisava consumo, com foco no luxo. As interlocutoras, contudo, não expressavam uma cartela de marcas que achavam legais ou não legais; não discutiam tendência. Pelo contrário. Muitas comentavam como buscavam, sobretudo, o tal conforto.

Brueghel, A luta entre o Carnaval e a Quaresma, 1559. Basicamente como a gente se sentiu em 2020 no mesmo período. Fonte.

Na época, eu entendia, mas não dimensionava.

E, nesses últimos anos, sentimos a aceleração dos canais de consumo - fintechs por todos os lados, mais crédito à disposição, mais variedades de tantos itens... as engrenagens das coleções e produções eram quase palpáveis! Em suma, um ritmo meio "desenfreado".

E foi justamente a palavra que a Fabiana** usou para descrever sua dinâmica aos 20 poucos anos. Na época da entrevista, ela tinha 35 e considerava que

“Luxo é ter tempo [...]. Eu tenho muita flexibilidade de horário no meu trabalho e [...] isso é um luxo. [...] Não ter que bater ponto de 9 às... não sei que horas da noite. Mas [...] luxo, [...] mais do que isso, é ter conforto. [...] De estar tranquila que as coisas vão dar certo, que eu posso fazer, comprar as coisas que eu quero, é ter estabilidade. [...] Isso é um luxo: você ter estabilidade financeira, e... profissional, e, com isso, você ter um conforto que... que tá tudo bem e você pode gastar [...] dentro de um orçamento. [...] Estabilidade e conforto, [...] isso é um luxo."

Ou a Catarina, que "chamaria [...] de luxo [...] poder morar com conforto". E a Luciana, para quem "conforto é qualidade".

Renoir, Danse à la campagne, 1889. Fonte.

Eu ouvia as entrevistadas e cognitivamente fazia sentido. Mas foi apenas com o passar do tempo que a riqueza do conforto foi aparecendo para mim. Não apenas o lado material, mas essa disposição emocional e mental sobre o que nos dá prazer, em curto, médio e longo prazo :) Não só o que nos agrada hoje, mas nos ajuda a manter a confiança para o amanhã, em todos os aspectos. Onde cada um de nós pode encontrar um conforto para gostar do hoje, e ainda montar um amanhã, digamos, gostoso?

pegada blog to (by) blog: Seurat
Seurat, Tarde de domingo na Ilha de Grande Jatte, 1884-1886. Fonte.

Professor Marconildo Viegas: Interpretação de texto com tela de ...
Rockwell, The Diary, capa do Saturday Evening Post de 17/07/1933.

Ao terminei de escrever, pensei em "comfort food" (e quem não sonhou com uma esses dias?). Mas quais outros caminhos teriam? Na verdade esse post é mais uma pergunta do que uma proposta, justamente pra cada um pensar sobre os confortos possíveis agora e também os pós-pandemia. Procurei ilustrar com quadros que trazem um pouquinho dessa sensação pra que a vivência da pandemia não seja só tensão e indefinição, mas aceite uma busca por leveza sustentável. (A Insustentável eu deixo pro Kundera)

* Minha mãe abriu em algum momento da década de 1990 e parou na página 2.
**Todos os nomes são anônimos, para preservar a identidade das entrevistadas.

Comentários

  1. Aproveitando que você iniciou o texto com O Bêbado e o Equilibrista, só consegui lembrar que Aldair Blanc foi internado no Miguel Couto com coronavírus. Esse ano combina com o primeiro verso da música "caía a tarde feito um viaduto", misturado com o conceito de angustia do Cioran "uma infinita tarde de domingo". Vou me embora antes que os otimistas venham poluir a paisagem.

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