Eu não tinha planejado esse post. Pelo contrário, estava pensando em caminhos muito diferentes aqui pro Trama (inclusive com nova entrevista da coluna Pessoas & Profissões). Mas o assunto te pega passeando, e mais - às vezes ele ficou um tempo de tocaia, pra te encontrar no momento certo. Então, ontem, nesses trajetos relativamente arbitrários do Navegar Pela Internet, surgiu um comentário incisivo do Leo Dias, do UOL, sobre as atitudes das blogueiras / influenciadoras digitais em meio ao cenário nacional. "O luxo", afirmava, "não faz mais parte do debate".
Bastou ler essa frase pra recapitular todo o processo da minha tese (aquela onde algumas entrevistadas pensavam sobre conforto), que, justamente, pesquisou o consumo de luxo aqui no Rio de Janeiro*. Logo o o luxo - o mesmo luxo que recebeu significativa atenção durante menos de 10 anos, norteou discussões de negócios, virou capa de revista, mas que continuou relativamente pouco explorado nos seus sentidos. Afinal, quais quesitos se inserem no termo? E por que ele parece tão deslocado agora?
O luxo é um só?
Permeado de conexões com a cultura material, o luxo parece levantar, a princípio, questões econômicas e de desigualdade social. Vem a pergunta: “Como é possível que alguns gastem tanto com objetos, quando outros mal têm o que comer?”. Mas a trajetória do conceito “luxo” possui uma longa cronologia e dimensões elaboradas, incluindo a coletividade, a dinâmica do tecido social, o lugar e os riscos da economia e da urbe no desenvolvimento moderno (inclusive no Brasil).
Bastou ler essa frase pra recapitular todo o processo da minha tese (aquela onde algumas entrevistadas pensavam sobre conforto), que, justamente, pesquisou o consumo de luxo aqui no Rio de Janeiro*. Logo o o luxo - o mesmo luxo que recebeu significativa atenção durante menos de 10 anos, norteou discussões de negócios, virou capa de revista, mas que continuou relativamente pouco explorado nos seus sentidos. Afinal, quais quesitos se inserem no termo? E por que ele parece tão deslocado agora?
O luxo é um só?
Permeado de conexões com a cultura material, o luxo parece levantar, a princípio, questões econômicas e de desigualdade social. Vem a pergunta: “Como é possível que alguns gastem tanto com objetos, quando outros mal têm o que comer?”. Mas a trajetória do conceito “luxo” possui uma longa cronologia e dimensões elaboradas, incluindo a coletividade, a dinâmica do tecido social, o lugar e os riscos da economia e da urbe no desenvolvimento moderno (inclusive no Brasil).
Hoje, então, resolvi trazer uma pequena sociohistória do assunto, porque ela é necessária. Assim como ainda usamos a ideia de "ir à Disney" como um divisor de fronteiras (que o dia o Paulo Guedes), o luxo vai e volta dos argumentos quando se pretende mencionar os Reais Problemas do País. Não é que os problemas não existam. Mas por que a gente remete ao luxo para amplificar essas questões?
Um debate antigo
Não há consenso sobre a etimologia da palavra "luxo": ele detém uma ambigüidade – ou pluralidade – de sentidos responsáveis pela “reputação mista” - fonte de prazer, fonte de corrupção. Alguns estudos procuram argumentar que o termo remete ao eterno, ao atemporal; eu não concordo. A meu ver, ele discute os quesitos morais de como a gente se organiza, e por isso é algo tão sensível. Assim como pode ser luz, pode ser luxúria, e aí o bicho pega.
Na Grécia Antiga, as pessoas já discutiam se o luxo não era motor de moleza, individualismo, fraqueza diante dos desafios da vida. Dois pontos pareciam por em risco a estrutura da época: o da divisão social e o do teor indutivo de fraqueza ou debilidade. Enquanto o primeiro atuaria como um “solvente, afrouxando e separando os laços sociais concebidos como necessários para o sustento da comunidade” [1], o segundo enfatizaria o enfraquecimento individual que, em larga escala, poria o grupo em risco.
A história é longa, não chegou até nós de maneira linear e sem modificações. Mas é incrível como, na Europa do século XVIII, o “excesso de luxo, uma conquista de ‘comodidades’ que supõe-se ameaçar a força e a saúde” [2]. E é, na época, um problema urbano. A cidade atua como cenário dos “efeitos turvos e de usurpação de valores”, na percepção do ensaísta Mercier [3]. A absorção de estímulos externos pode criar desequilíbrios internos severos – os chamados “vapores”, entre outros – e, desembocar, em última instância, na loucura. Ou seja, a corrupção através do corpo chegaria até a mente e a alma, inviabilizando qualquer humanidade! Esse seria o teor venenoso do luxo... literalmente, perder a noção da realidade. Qualquer semelhança com as críticas do momento não é mera coincidência.
Mas já no final da pesquisa, em 2016-2017, a palavra "crise", até então ausente, se estabeleceu nas entrevistas (sempre elas, amo entrevistas). A Cristina, que viajava duas vezes ao ano para os Estados Unidos com a família, comentou: “A gente sabe que tem que ser uma classe muito alta, [...] a que tá consumindo ainda, por conta dessa crise. Mas a impressão que eu tenho é que [...] essas lojas [...] não estão mais no auge. [...] Que [...] decaíram, [...] declinaram [...] nos últimos anos". Seria o início da desilusão?
Quantas vezes não se ansiou por um Brasil integrado, de certa forma cosmopolita. A chegada de marcas internacionais de peso apareceu como a cereja do bolo de uma inserção maior, tipo fazer parte de um grupo seleto e com bom gosto, dominando as gramáticas de estilo, familiares com marcas "globais". A decepção diante dos anos posteriores, com crise atrás de crise, ressaltaram a faceta do luxo percebida como negativa - para muitos, uma opulência fora de lugar, uma pretensão deslocada e, por que não, um lembrete de sonhos que não deram muito certo, agora ainda mais distantes com o dólar a quase 6 reais, e onde o Rio é a cidade mais cara para comprar bens de luxo.
Não há consenso sobre a etimologia da palavra "luxo": ele detém uma ambigüidade – ou pluralidade – de sentidos responsáveis pela “reputação mista” - fonte de prazer, fonte de corrupção. Alguns estudos procuram argumentar que o termo remete ao eterno, ao atemporal; eu não concordo. A meu ver, ele discute os quesitos morais de como a gente se organiza, e por isso é algo tão sensível. Assim como pode ser luz, pode ser luxúria, e aí o bicho pega.
Na Grécia Antiga, as pessoas já discutiam se o luxo não era motor de moleza, individualismo, fraqueza diante dos desafios da vida. Dois pontos pareciam por em risco a estrutura da época: o da divisão social e o do teor indutivo de fraqueza ou debilidade. Enquanto o primeiro atuaria como um “solvente, afrouxando e separando os laços sociais concebidos como necessários para o sustento da comunidade” [1], o segundo enfatizaria o enfraquecimento individual que, em larga escala, poria o grupo em risco.
A história é longa, não chegou até nós de maneira linear e sem modificações. Mas é incrível como, na Europa do século XVIII, o “excesso de luxo, uma conquista de ‘comodidades’ que supõe-se ameaçar a força e a saúde” [2]. E é, na época, um problema urbano. A cidade atua como cenário dos “efeitos turvos e de usurpação de valores”, na percepção do ensaísta Mercier [3]. A absorção de estímulos externos pode criar desequilíbrios internos severos – os chamados “vapores”, entre outros – e, desembocar, em última instância, na loucura. Ou seja, a corrupção através do corpo chegaria até a mente e a alma, inviabilizando qualquer humanidade! Esse seria o teor venenoso do luxo... literalmente, perder a noção da realidade. Qualquer semelhança com as críticas do momento não é mera coincidência.
E no Brasil? Como ficamos?
Quando comecei a pesquisar o luxo, lá em 2012, parecíamos imunes a uma (boa) parte das ondas já estabelecidas no mundo. Enquanto alguns países se recuperavam lentamente da crise de 2008, inúmeras lojas internacionais se instalavam pela primeira vez por aqui. Com exceção de empreendimentos pioneiros, como a Daslu, muitas marcas ainda eram "compradas lá fora", reforçando nossa valorização do internacional como "lugar onde realmente vale a pena". Ainda assim, a Hermès "vinha a galope" e o VillageMall divulgava, logo antes da sua inauguração, que "luxo é ser carioca".
Quando comecei a pesquisar o luxo, lá em 2012, parecíamos imunes a uma (boa) parte das ondas já estabelecidas no mundo. Enquanto alguns países se recuperavam lentamente da crise de 2008, inúmeras lojas internacionais se instalavam pela primeira vez por aqui. Com exceção de empreendimentos pioneiros, como a Daslu, muitas marcas ainda eram "compradas lá fora", reforçando nossa valorização do internacional como "lugar onde realmente vale a pena". Ainda assim, a Hermès "vinha a galope" e o VillageMall divulgava, logo antes da sua inauguração, que "luxo é ser carioca".
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO. São
Paulo,17 de junho de 2017, p.C3. Caderno Ilustrada.

As capas da Economist em 2009 (edição do 14 ao 20 de nov.) e em 2013 (edição de 28 de set a 04 de out). Fonte.
A capa da Economist em 2014 (edição do 18 ao 24 de out). Fonte: [6].
Em 1966, Coco Chanel diria ao fotógrafo Cecil Beaton: “O oposto do luxo não é a pobreza, porque nas casas dos pobres pode-se degustar um bom ‘pot-au-feu’. Seu oposto não é simplicidade, porque há beleza no celeiro e frequentemente grande simplicidade no luxo, mas não há nada na vulgaridade, (que é) o seu oposto completo” [4].
Aqui no Brasil, isso fica ainda mais forte na medida em que “o luxo é uma diferença que diferencia” [5], lembrando da desigualdade que ainda espera por muitas melhorias. Não por acaso, a Nicole Tamborindeguy, sobrinha da Narcisa, avalia que “hoje em dia é tão delicada essa questão da desigualdade que falar sobre dinheiro e quanto custa pra viver aqui é chato”.
Quantas vezes não se ansiou por um Brasil integrado, de certa forma cosmopolita. A chegada de marcas internacionais de peso apareceu como a cereja do bolo de uma inserção maior, tipo fazer parte de um grupo seleto e com bom gosto, dominando as gramáticas de estilo, familiares com marcas "globais". A decepção diante dos anos posteriores, com crise atrás de crise, ressaltaram a faceta do luxo percebida como negativa - para muitos, uma opulência fora de lugar, uma pretensão deslocada e, por que não, um lembrete de sonhos que não deram muito certo, agora ainda mais distantes com o dólar a quase 6 reais, e onde o Rio é a cidade mais cara para comprar bens de luxo.
Mas não é o fim dessa história, nem do debate. A nossa cultura material não é boa nem ruim - ela ressalta as nossas próprias relações e aspirações. Entendendo melhor por que o luxo parece (e apenas parece!) tão fútil, quem sabe não pensamos mais sobre o que queremos priorizar?
REFERÊNCIAS
[1] HUNT, A. A Governance of the Consuming Passions. A History of Sumptuary Law. Basingstoke e Londres: Macmillan, 1996, p.79-81.
[2] VIGARELLO, G. S'exercer, jouer. In: VIGARELLO, G (org.). Histoire du corps 1. De la Renaissance aux Lumières. Paris: du Seuil, 2005, p. 246-326. Citação p.302-303.
[3] ROCHE, D. La culture des apparences. Une histoire du vêtement. Paris: Fayard, 1989, p.14.
[4] MCNEIL, P., RIELLO, G. Luxury: a rich history. Oxford: Oxford University Press, 2016, p.01.
[5] MACHADO SOARES, M.R. Alguma coisa diz que você é tudo!. In: CASTILHO, K., VILLAÇA, N. O Novo Luxo. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2006, p.77-88. Citação p.79.
[6] ROSA, G. The Economist: uma tradução funcionalista do cenário político-econômico brasileiro (2009-2016). Monografia (graduação), Instituto de Letras, Universidade de Brasília, 2017. Imagem na p.15.
*Já dizia Werner Sombart: "[...] Sou incapaz de determinar a relação entre a qualidade do produto e a forma da produção. Nós sabemos que, no final do século dezoito, artesanato e produção doméstica coexistiram com grandes estabelecimentos de exportação de linho (roupas de cama). Mas onde estava a linha divisória entre artigos de luxo e artigos ordinários? Essa questão merece uma tese de doutorado". Na verdade, merece não só uma, como várias! :)
REFERÊNCIAS
[1] HUNT, A. A Governance of the Consuming Passions. A History of Sumptuary Law. Basingstoke e Londres: Macmillan, 1996, p.79-81.
[2] VIGARELLO, G. S'exercer, jouer. In: VIGARELLO, G (org.). Histoire du corps 1. De la Renaissance aux Lumières. Paris: du Seuil, 2005, p. 246-326. Citação p.302-303.
[3] ROCHE, D. La culture des apparences. Une histoire du vêtement. Paris: Fayard, 1989, p.14.
[4] MCNEIL, P., RIELLO, G. Luxury: a rich history. Oxford: Oxford University Press, 2016, p.01.
[5] MACHADO SOARES, M.R. Alguma coisa diz que você é tudo!. In: CASTILHO, K., VILLAÇA, N. O Novo Luxo. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2006, p.77-88. Citação p.79.
[6] ROSA, G. The Economist: uma tradução funcionalista do cenário político-econômico brasileiro (2009-2016). Monografia (graduação), Instituto de Letras, Universidade de Brasília, 2017. Imagem na p.15.
*Já dizia Werner Sombart: "[...] Sou incapaz de determinar a relação entre a qualidade do produto e a forma da produção. Nós sabemos que, no final do século dezoito, artesanato e produção doméstica coexistiram com grandes estabelecimentos de exportação de linho (roupas de cama). Mas onde estava a linha divisória entre artigos de luxo e artigos ordinários? Essa questão merece uma tese de doutorado". Na verdade, merece não só uma, como várias! :)
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