Olá pessoal! Após mais alguns meses atribulados, retomamos os posts para fechar 2019 com um dos temas que permearam o ano - os romances policiais como registros de mudanças sociais, e suas devidas ambivalências :)
(Para quem conseguir pegar no cinema uma homenagem à Agatha Christie, Knives Out ("Entre Facas e Segredos") estava em cartaz aqui no Rio)
Se, nos posts anteriores, focamos nas petites cellules grises, hoje vamos partir pra um conteúdo que me empolga em especial por conta da formação, e também da riqueza de elementos em muitos exemplos - a relação das obras com "mudanças de estatuto" (CHAUVIN, 2017) social.
De fato, as imensas mudanças em relação ao espírito vitoriano, à Belle Époque e as expectativas sobre papéis sociais permeiam a maioria das histórias, e, por isso mesmo poucas, se deslocam no tempo/espaço para muito longe do eixo britânico, com um pano de fundo de conquistas femininas e modificações aceleradas em relação a independência, beleza, riqueza, e estrutura de classes. E o mais interessante é a percepção dúbia, em que as roupas, a estética, a elegância, mas também as propostas, os anseios e os horizontes sobre elementos vistos como "de sucesso" ocupam um espaço privilegiado na leitura do conjunto. Assim como as testemunhas das mudanças não bateram, ainda, o martelo sobre seu teor positivo ou negativo, sobre como lidar com os novos ventos, os enredos também lidam com relativa franqueza sobre relacionamentos, sem, porém, tomar um partido veemente.
(Para quem conseguir pegar no cinema uma homenagem à Agatha Christie, Knives Out ("Entre Facas e Segredos") estava em cartaz aqui no Rio)
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Nada como uma homenagem! Fonte.
Se, nos posts anteriores, focamos nas petites cellules grises, hoje vamos partir pra um conteúdo que me empolga em especial por conta da formação, e também da riqueza de elementos em muitos exemplos - a relação das obras com "mudanças de estatuto" (CHAUVIN, 2017) social.
De fato, as imensas mudanças em relação ao espírito vitoriano, à Belle Époque e as expectativas sobre papéis sociais permeiam a maioria das histórias, e, por isso mesmo poucas, se deslocam no tempo/espaço para muito longe do eixo britânico, com um pano de fundo de conquistas femininas e modificações aceleradas em relação a independência, beleza, riqueza, e estrutura de classes. E o mais interessante é a percepção dúbia, em que as roupas, a estética, a elegância, mas também as propostas, os anseios e os horizontes sobre elementos vistos como "de sucesso" ocupam um espaço privilegiado na leitura do conjunto. Assim como as testemunhas das mudanças não bateram, ainda, o martelo sobre seu teor positivo ou negativo, sobre como lidar com os novos ventos, os enredos também lidam com relativa franqueza sobre relacionamentos, sem, porém, tomar um partido veemente.
Châtelaines: a síntese da aristocracia rural
Embora Londres surja como um imenso centro populacional - com todos os movimentos que isso acarreta, no melhor estilo Dickens -, o peso rural é indiscutível e boa parte dos crimes acontece, é claro, nos famosos domínios ou propriedades distribuídos Reino Unido adentro. Nada melhor do que St. Mary Mead, a pequena aldeia da Miss Marple, como epítome de uma constelação social, com casinhas ainda muito ajardinadas e divididas por longas extensões de bosques, caminhos, entre outros. As grades mesmo raramente fazem mais do que delimitar espaços ou servir de suportes para jardins (aos quais muitos personagens se dedicam). Ao mesmo tempo, ali persistem (e tentam se estender) muitas tradições - equestres, alimentares e estéticas, para citar ao menos três importantes. E destaca-se a existência de fortunas de família, raramente explicadas; pelo contrário - normalmente são taken for granted e podem suscitar polêmicas, motivos para o crime, ou mesmo sublinhar a irresponsabilidade dos descendentes na gestão da propriedade. Em O Misterioso Caso de Styles (The Mysterious Affair at Styles, 1916), por exemplo, justamente os irmãos John e Lawrence Cavendish apresentam maneiras muito distintas de lidar com a vida, e, por extensão, para pleitear quem de fato deve herdar Styles Court.
E, assim como as estâncias apresentam (territorialmente, inclusive) o marco da elegância e tradição chá das 5, os proprietários refletem esses quesitos - em especial as anfitriãs. Assim, em Um corpo na biblioteca, a sra. Bantry, enquanto espera a chegada de miss Marple para avaliar o corpo encontrado em meio aos livros, lembra ao marido de comer o café da manhã, antes que o bacon esfrie. A própria Miss Marple avalia que a vítima "não estava adequadamente vestida para um roubo" (2014, p.19) e a sra. Bantry concorda que "estava vestida para um baile ou para alguma festa" (idem, ibidem) - embora o vestido fosse de um "cetim de mau gosto, de qualidade inferior" (idem, ibidem), provavelmente advindo de "uma dessas lojinhas imundas, onde tudo é vendido por ninharias" (idem, ibidem). O que condizia bastante com uma figura que "roía unhas e [com] [...] os dentes um pouco para fora" (idem, ibidem).
Afinal, quem diz propriedade diz, ainda, serventes e estes participam prontamente não apenas da dinâmica local, como do contraste de classes tão presente. N'A Casa Torta, por exemplo, "uma copeira abriu a porta da ala oposta à nossa. Ao ver Taverner, pareceu assustada, mas ligeiramente insolente" (2011, p.68). Ao mesmo tempo, Sophia, a protagonista, descreve que "o vovô tinha cozinheira, governanta, copeira e camareiro. Gostava de criados. Ele os pagava muitíssimo bem, é claro, e os tinha ao seu dispor. [...] Às vezes nós temos criados, mas aí minha mãe tem um dos seus ataques e eles vão embora, e então contratamos arrumadeiras por algum tempo e depois começa tudo de novo. [...] O cargo da babá é permanente e é ela quem lida com as emergências" (idem, p.83).
A babá, por sua vez, "usava um avental branco e imaculado amarrado em torno de um quadril volumoso, e, no momento em que a vi, soube que não havia nada a temer. É aquela sensação agradável que [...] sempre é capaz de transmitir. Tenho 35 anos, mas me senti como um menino de quatro anos em perfeita segurança. [...] Trouxe a xícara de chá e um prato com dois biscoitos doces. Senti [...] que tinha voltado para a creche. [...] Os temores da escuridão e do desconhecido haviam me abandonado" (idem, p.125). Este pilar de segurança dá, inclusive, sua opinião sobre os motivos de aflição na família: "se a senhorita quer saber, eu acho que foram os comunistas. [...] Todo mundo diz que são a causa de tudo o que acontece. Mas se não foram os comunistas, foram os católicos, pode escrever o que estou dizendo" (idem, p.129).

Uma adaptação da Casa Torta saiu em 2017, inclusive :)
Não apenas temos cozinheiras, copeiras, babás (normalmente grandes difusores de comentários e informações entre casas, mas também símbolo de uma imensa lealdade ao clã), como surgem, ainda, as profissionais liberais de todas as vertentes - desde vendedoras em lojinhas sem destaque a artistas de todas as modalidades. Atrizes decadentes, aspirantes a grandes divas, aproveitadoras de seus talentos, dedicadas à sua atividade ou não - muitas circulam em meios distintos (mais ou menos vulgares), adotam nomes artísticos ou abrem um ateliê com ou sem mecenato.
Em A Mansão Hollow, boa parte desses tipos ideais se confronta num final de semana a convite de lorde e lady Angkatell. Midge Hardcastle, amiga de longa data de lady Angkatell, observa "o encanto extraordinariamente incisivo que [lady Angkatell] irradiara durante toda a sua vida, e que mesmo agora, com mais de sessenta anos, não lhe faltava. Por causa dele, pessoas de todo o mundo, estadistas estrangeiros, ajudantes-de-ordens, funcionários do governo, toleravam inconveniências, aborrecimentos e espantos. Eram o prazer e a ingenuidade infantis de suas ações que desarmavam e anulavam as críticas. Lucy não precisava fazer nada além de abrir aqueles grandes olhos azuis, estender as mãos frágeis e murmuras 'Oh! mas eu lastimo tanto...', e o ressentimento logo desaparecia" (2008, p.605). Enquanto a própria Midge abre mão de sua tradição aristocrática para ganhar a vida como vendedora na cidade (suscitando polêmicas), Henrietta Savernake é uma bem-sucedida escultora solteira. Seu amante, o médico John Christow, é casado com Gerda, uma mulher percebida como simples, lenta e subalterna em relação ao sucesso, agilidade e competitividade das demais.
Em contrapartida, a perspectiva do casamento (alguns, ansiados há anos) não desaparece com o aumento da independência - embora nem sempre seja pintado como um sucesso indelével.
O milagre do matrimônio persevera?
Em boa parte das obras, há tanto casais (já) infelizes, quanto jovens enamorados ansiosos pela suposta epifania propiciada pelo casamento-para-sempre (CHAUVIN, s/d). Inclusive, é digna de nota a velocidade do amor em muitos dos casos. Na própria Casa Torta, o protagonista comenta que, já no primeiro encontro com Sophia, seu interesse amoroso, percebeu "a competência que a levara ao posto que ocupava, apesar de, na época, [...] ter apenas 22 anos" (2011, p.09). Mas atingir o matrimônio não impede ninguém de nada - casos extra conjugais, complôs, arranjos de conveniência permeiam páginas e páginas e muitas vezes servem de motivos para crimes.
Em boa parte das obras, há tanto casais (já) infelizes, quanto jovens enamorados ansiosos pela suposta epifania propiciada pelo casamento-para-sempre (CHAUVIN, s/d). Inclusive, é digna de nota a velocidade do amor em muitos dos casos. Na própria Casa Torta, o protagonista comenta que, já no primeiro encontro com Sophia, seu interesse amoroso, percebeu "a competência que a levara ao posto que ocupava, apesar de, na época, [...] ter apenas 22 anos" (2011, p.09). Mas atingir o matrimônio não impede ninguém de nada - casos extra conjugais, complôs, arranjos de conveniência permeiam páginas e páginas e muitas vezes servem de motivos para crimes.
No conjunto dos enredos, inúmeros indícios tecem a irrefreável independência feminina como um contraste, um porém, e mesmo um confronto ao tão idealizado casamento. Em muitos momentos, as fragilidades, hesitações e ponderações das mulheres - cada uma à sua maneira - aparecem simbolizados nas roupas, acessórios e até mesmo seus joelhos.

Uma Agatha Christie jovem ilustrando bem o estilo de época! Fonte.
Bella Tanios, de Poirot perde uma cliente (Dumb Witness, 1937), detém o seguinte retrato: “A sra. Tanios poderia ter qualquer idade acima de trinta anos. Era alta, magra, de cabelos escuros, olhos inexpressivos e rosto apreensivo. Um elegante chapéu estava disposto em sua cabeça, num ângulo estranho, e ela usava um vestido de algodão horrível” (Christie, 2010, p. 158).
Em Um Gato Entre os Pombos, vê-se a arrojada iniciativa de uma escola para meninas de elite fundada e dirigida por mulheres. E justamente a formação, transmissão de conhecimento e etiqueta, e transição de herança - dessa vez, intelectual e de gestão - se tornam assuntos eminentemente femininos para além do espaço dos clãs. A diretora, srta. Bulstrode, "era alta e de aparência bastante nobre, seu cabelo grisalho, bem penteado, olhos cinza que expressavam um intenso humor e uma boca firme" (2013, p.16). Assim, "sua filha seria educada da maneira que você quisesse, e também da maneira que a srta. Bulstrode quisesse, e a soma disso parecia satisfazer as partes" (idem, ibidem).
Até mesmo a secretária da diretora, Ann Shapland, "era uma bela jovem de 35 anos, com cabelos que lhe assentavam com um gorro de cetim negro. Ela podia ser atraente quando queria, mas a vida havia lhe ensinado que sua eficiência e competência muitas vezes davam melhores resultados e evitavam complicações dolorosas. [...] No todo, seu trabalho sempre fora feito entre homens. Ann se perguntava como ela iria se sentir [...] completamente submersa entre as mulheres. [...] E sempre havia Dennis! O fiel Dennis voltando da Malásia, da Birmânia, de várias partes do mundo, sempre o mesmo, devotado, pedindo-lhe mais uma vez que se casasse com ele. Querido Dennis! Mas seria enfadonho demais ser casada com Dennis." (idem, p.10).
E de novo a Mansão Hollow nos traz uma cena em que se evidenciam os sintomas de acanhamento de Gerda Christow face ao cônjuge e de seu desajuste perante os outros. Assim como Bella Tanios, Gerda também se veste mal: “[Henrietta] voltou-se para Gerda e fez um comentário sobre o pulôver que ela estava vestindo, um negócio verdadeiramente horrível, num verde-alface desbotado, deprimente e desengonçado demais, querida… e Gerda logo se animou, parece que ela mesma havia tricotado” (Christie, 2014, p. 605). Este conjunto reprovável, porém, é menos um desdobramento de um mau gosto absoluto e mais uma expressão de dificuldades internas - pois Midge complementa: "Você sabia, Lucy, que Henrietta realmente fez um pulôver igual? [...] E usou-o. Henrietta leva as coisas até o fim. [...] Em Henrietta ficou muito bom" (idem, p.608).
E de novo a Mansão Hollow nos traz uma cena em que se evidenciam os sintomas de acanhamento de Gerda Christow face ao cônjuge e de seu desajuste perante os outros. Assim como Bella Tanios, Gerda também se veste mal: “[Henrietta] voltou-se para Gerda e fez um comentário sobre o pulôver que ela estava vestindo, um negócio verdadeiramente horrível, num verde-alface desbotado, deprimente e desengonçado demais, querida… e Gerda logo se animou, parece que ela mesma havia tricotado” (Christie, 2014, p. 605). Este conjunto reprovável, porém, é menos um desdobramento de um mau gosto absoluto e mais uma expressão de dificuldades internas - pois Midge complementa: "Você sabia, Lucy, que Henrietta realmente fez um pulôver igual? [...] E usou-o. Henrietta leva as coisas até o fim. [...] Em Henrietta ficou muito bom" (idem, p.608).
De certa forma, as questões com que se deparam as personagens femininas se assentam melhor ou pior, como os vestidos (elegantes, baratos, que não enganam o olhar treinado, fictícios), os chapéus, e as raquetes de tênis em partidas de desenvoltura variável. Muitas vezes, as personagens-símbolo de tradições em via de transformação, como serventes e senhoras aristocráticas, parecem perfeitamente bien dans sa peau. Por isso mesmo, revelam, com a placidez do senso comum, observações importantes para os outros analistas. Outras vezes, as personagens de meia-idade reformulam suas iniciativas e optam pelo resgate de caminhos mais conservadores - como atender à última chamada de um casamento muito adiado. Enquanto algumas figuras mais novas aceitam as aventuras com naturalidade - por vezes, até em casos excessivos, correndo o risco de se tornarem vítimas de seus próprios tempos ao se drogarem demais, não superarem os meios precários de uma arte mal sucedida, ou mesmo o ciúme de um amor banal. Mas, sobretudo, as figuras parecem sob a ameaça de uma vulgaridade, essa sim, um mal de difícil tratamento para Christie, menos diante de esforços de manutenção de símbolos, mas de uma certa perda de magia com o advento da modernidade.
E com isso chegamos ao quase final da nossa série de artigos, que basicamente permeou 2019 inteiro :) Uma linda virada para todos e sugiram com vontade novos assuntos pra 2020!
REFERÊNCIAS
CHAUVIN, Jean Pierre, Encontro com a morte: tirania e liberdade em Agatha Christie, Rumores, v.11, no.21, jan.-jun. 2017. Disponível online em: http://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/123392/130178. Acesso em 02 de março de 2019.
_____, O cão de Agatha Christie, s/d. Disponível online em: http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/biblioteca/acervo/producao-academica/002786563.pdf. Acesso em 02 de março de 2019.
REFERÊNCIAS
CHAUVIN, Jean Pierre, Encontro com a morte: tirania e liberdade em Agatha Christie, Rumores, v.11, no.21, jan.-jun. 2017. Disponível online em: http://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/123392/130178. Acesso em 02 de março de 2019.
_____, O cão de Agatha Christie, s/d. Disponível online em: http://www3.eca.usp.br/sites/default/files/form/biblioteca/acervo/producao-academica/002786563.pdf. Acesso em 02 de março de 2019.
CHRISTIE, Agatha, A Mansão Hollow, in Assassinato no Expresso do Oriente; Morte no Nilo; A Mansão Hollow; Cai o pano: edição de luxo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
_________, A Casa Torta, Porto Alegre: L&PM, 2011.
_________, Um gato entre os pombos, Porto ALegre: L&PM, 2013.
_________, Um corpo na biblioteca, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
RAPPAPORT, Erika, Shopping for pleasure: Women in the making of London's West End, Princeton: Princeton University Press, 2000.
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