Retomando a coluna Uma cidade, um livro, resolvi seguir fielmente o itinerário proposto. O capítulo de hoje aborda um residente especial de uma cidade especial: 's-Hertogenbosch, na província de Brabant do Norte, que, como o nome não indica, fica ao sul da Holanda. O nome da cidade e da região guardam fortes resquícios de uma história atribulada, e nosso homenageado de hoje viveu exatamente na chamada Era de Ouro da região (séculos XVI-XVII) - um período de especial florescimento comercial, intelectual, militar, artístico e também em relação à circulação de informações.
Trata-se de Geert de Kremer (1512-1594), mais conhecido como Gerardus Mercator Rupelmundanus, o grande nome por trás da projeção de Mercator, o sistema de elaboração cartográfica mais difundido e responsável pela nossa "idéia comum" de mapa-mundi hoje; e discutiremos Atlas, uma obra póstuma de 1595, publicada em Düsseldorf.
Figura 01 - O único retrato conhecido de Mercator. Fonte: Zuber, 2011, p.525.
Devo dizer que não foi fácil identificar um livro cuja história, de fato, se passasse nas ruas de Den Bosch - um centro animado desde a sua elevação a cidade, no século XII. E talvez isso tenha a ver com uma constituição complexa, regional, onde uma rede de crafts e conhecimentos se articulasse num espaço muito maior que uma única cidade. De fato, Den Bosch é conhecida por conta de um forte peso artístico e escolar, em especial por conta de Hieronymus Bosch, possivelmente seu habitante mais famoso. Então o livro da vez não trata diretamente da cidade, embora Mercator tenha estudado lá durante sua juventude, numa filial dos Irmãos da Vida Comum, comunidade católica fundada por Gerhard Groote no século XIV e que merece um post pra ela em especial!
No entanto, o caso de Mercator ilustra muitíssimo bem a superposição de fluxos que tanto me chamou a atenção em Den Bosch: a partir de sua análise, podemos perceber como se superpuseram compreensões religiosas, militares, esotéricas, científicas (numa concepção incipiente do termo), regionais e comerciais. Fiquei muito impressionada como Den Bosch sintetizava, na posição de capital, uma dinâmica particular da região de Brabant do Norte e acredito que o caso de Mercator transponha bem esses pontos, inclusive pela variedade de cidades onde morou e estudou.
Não é possível entender o florescimento de Den Bosch e região sem uma pequena busca etimológica, que revela rapidamente uma longa história política e territorial. O próprio nome "'s-Hertogenbosch" é uma contração de "des Hertogen bosch", ou "o bosque do duque" (e a sua nomeação em francês traz uma tradução literal e incrível: "Bois-le-duc"). Isso porque o ducado de Brabant emergiu desde o século IX, por conta do declínio e fragmentação do Império Carolíngio, consistindo em uma das frações do antigo ducado da Baixa Lorraine - as outras eram Luxemburgo, Hainaut, Namur, entre outros pequenos domínios feudais [1]. Louvain e Bruxelas se consolidaram como os principais centros de Brabant, que, portanto, era mais vinculado à região de Flandres.
Figura 02 - A divisão territorial, incluindo o Ducado de Brabant, em 1476: um preparo à geração de Mercator. Fonte: Huizinga, 2010, pré-textual.

Figura 03 - A região de Brabant e a posição estratégica de Antuérpia, exatamente na fronteira entre o Norte e o Sul. Fonte: Limberger, 2001, p.162.
Embora o ducado tenha trocado de mãos e de domínio diversas vezes, subsistiu até o século XVIII (Brabant do Sul permaneceu sob domínio espanhol, enquanto o Norte pertenceu, inclusive, à Áustria). Então é muito interessante perceber como fronteiras atuais podem não traduzir bem conexões, fluxos e proximidades de longa duração. O próprio Mercator nasceu na atual Bélgica, se desenvolveu em centros importantes de Brabant do Norte (Den Bosch e Louvain) e se estabeleceu comercialmente em Duisburg, na atual Alemanha. Assim como, hoje, não dimensionamos mais o peso do Sacro Império Romano Germânico, também percebemos pouco a proximidade entre comerciantes de Flandres, a importância das línguas e os circuitos que colaboraram para a imensa riqueza da Era de Ouro.
Embora discussões sobre uma terra australis já existissem anteriormente,
a obra conjunta de Mercator traz uma dimensão enorme. Ela é formada
pelo material escrito, por correspondência, mas principalmente pela
produção catográfica bidimensional e também em forma esférica, posta à
venda. Então Mercator não apenas atuou como um cientista, matemático e
(aspirante a) filósofo, mas também como empresário, artesão e
negociante. (E, para sintetizar o espírito da época, sua possível
simpatia com o protestantismo gerou perseguição, culminando em 7 meses de aprisionamento em um castelo de sua cidade natal, Rupelmonde)
Mercator não foi um escritor propriamente dito, ou melhor, escreveu sobretudo no formato catográfico*. No entanto, produziu também algumas obras interpretativas sobre pontos importantes para sua produção - tanto em quesitos práticos (como caligrafia) como fortemente conceituais. Em Atlas, obra compilada, pelo seu filho Rumold, temos 107 mapas e o tratado De mundi creatione ac fabrica liber, de 32 páginas. O título completo, Atlas Sive Cosmographicae Meditationes de Fabrica Mundi et Fabricati Figura, pode ser traduzido como Atlas ou meditações cosmográficas sobre a criação do universo e o universo como criado. Já nesse título, vemos um intuito de compreensão maior do que o detalhamento físico de uma geografia, e sim uma ambição (muito coerente com sua época) de abranger uma Ordem maior e os sentidos por trás das criações, terrenas e extra-terrenas. A terra australis aparece como uma das principais conclusões dessa junção de ciência, filosofia, análise de dados de viajantes e, ainda, cosmologia.
Mercator se destacasse em especial por ser um pioneiro na elaboração de
soluções para a transposição precisa de dados; a elaboração das loxodromias foi uma das principais. Essas linhas complementaram a noção anterior de "grandes círculos", que, embora funcionais na prática e em outras projeções, não forneciam resultados corretos dependendo da angulação assumida de início. A solução de Mercator envolveu apresentar as loxodromias como linhas retas do mapa; embora elas não designem o caminho mais curto entre dois pontos, garantem a chegada no destino correto - para somar economia e precisão, seria preciso usar 2 mapas com projeções diferentes (Hickin, 2014, pp.75-94). Por outro lado, a projeção de Mercator também se tornou conhecida por conta da sua distorção crescente de escalas rumo aos pólos, criando a famosa discrepância entre os tamanhos dos continentes e sua transposição nos mapas. (Hoje, há muitas outras projeções e um material incrível sobre cartografia)
Mas a produção de mapas ultrapassa uma dimensão especificamente técnica (embora ela exista). Ela diz respeito, também, à elaboração de teorias filosóficas próprias, dialogando com grandes referências da antiguidade, como Ptolomeu. E a cosmogonia de Mercator aparece em De mundi creatione ac fabrica liber, mas também em outros escritos, num projeto humanista maior: a Chronologia (1568), a Cosmographia (1569) e o Evangelicae historia quadripartitas monas (1592), com uma sinopse completa dos Evangelhos em latim**. Mike Zuber (2011) sublinha que essa aproximação entre cosmografia e produção cartográfica se intensificou de 1560 em diante, demarcando uma intenção do nosso Mercator de se posicionar não apenas como comerciante ou craftsman, mas sobretudo como um humanista. No entanto, ao escolher Duisburgo como residênica, Mercator conseguiu uma solução diplomática entre as várias dimensões de sua obra: se encontrava em pleno carrefour comercial, a distância equivalente entre Frankfurt e Antuérpia, e ainda usufruia de um cenário tolerante em termos de religião (idem).
Figura 04 - Quatro cidades importantes na vida de Geradus Mercator. Elaboração a partir do Google Mapas.
O episódio da vez não abordou a perspectiva de um autor sobre uma cidade; em contrapartida, quis expôr um caso particularmente interessante de circulação e da riqueza de Den Bosch/Brabant do Norte na produção de informação. A produção de globos terrestres de Mercator superpôs visões sobre religião, ciência, cosmologia, precisão. Por outro lado, o rico cenário de Brabant sublinha os grandes fluxos entre centros universitários, irmandades religiosas, mecenato e comércio das informações, tanto para fins de conquista e expansão (como navegação) como também uma concepção estética (já que há menções dos globos e mapas como objetos de decoração em residências). Den Bosch, como capital, assistiu a esse grande cruzamento de elementos, materializados em um artesanato único. Ela aparece como anfitriã e sede de um estudante que, em alguns anos, concentrará as diversas expertises da região num caso de comércio e pesquisa da ciência tornada arte, ferramenta e decoração. Além disso, a circulação pelas cidades aponta um certo espírito independente de Brabant do Norte. Os vínculos com cidades-chave apontam bem uma força regional que se expande até Louvain, Duisbuirgo, e Antuérpia, como se Den Bosch fosse um centro de gravidade estratégico.
A partir desse ponto, podemos expandir o novelo e indagar sobre as repercussões de guerras religiosas na produção científica, nos perguntar sobre a terra australis e mesmo aprofundar quais informações já chegavam à região sobre o chamado Novo Mundo e a "quinta" área terrestre...
Vale dizer que os globos de Mercator não pararam no tempo. Em 2004, um par genuíno foi descoberto na Université de Lausanne, na Suíça e suscitou, de 2010 em diante, uma sequência de pesquisas interdisciplinar sobre sua história, suas características, suas possibilidades de restauro... E particularmente interessante é o fato do par constituir em um globo terrestre, datado de 1541, e um celeste, de 1551 - o único conhecido neste formato. Não consegui não adorar a complementação entre Ordem maior dos elementos terrenos e não terrenos! É possível ver uma projeção 3D de cada um, aqui e aqui.
O museu do Mercator, em Saint Niklas, na Bélgica, também tem uma versão 3D da sua exposição.
Figura 05 - Mundo terreno e mundo celestial unidos no par de Globos de Mercator de Lausanne. Fonte.
Figura 06 - O globo terrestre. Fonte.

Figura 07 - O globo celeste. Fonte.
* A idéia de pensar na cartografia como uma forma de redação veio com a leitura do trabalho de Chet Van Duzer (2008) sobre a denominação dos Açores como "ilhas do sol". Van Duzer ficou justamente intrigado pelo fato de só identificar essa atribuição em globos e mapas (inclusive um de Mercator, de 1581) mas nunca em fonte textual.
** Para Henk Jan de Jonge (1990), essa última obra apresentava uma finalidade científica específica: a de avaliar a duração do discurso público de Jesus, estimada em 4 anos por Mercator. Tratar-se-ia, portanto, de uma obra sobre cronologia.
REFERÊNCIAS
DE JONGE, H.J., Sixteenth-century gospel harmonies: Chemnitz and Mercator, in Théorie et pratique de l'exégèse: actes, Genebra: Droz, 1990, pp.155-166. Disponível online em: https://core.ac.uk/download/pdf/15589142.pdf. Acesso em 21 de fevereiro de 2019.
HICKIN, E.J., Maps and mapping. A cartographic manual, 3a edição, Burnaby: Simon Fraser University, 2014. Disponível online em: http://www.sfu.ca/~hickin/Maps/. Acesso em 21 de fevereiro de 2019.
HUIZINGA, J., O outono da Idade Média. Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos, São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LIMBERGER, M., Merchant capitalism and the countryside, Antwerp and the west of the duchy of Brabant (XVth-XVIth centuries), in HOPPENBROUWERS, P., VAN ZANDEN, J.L. (org.), Peasants into farmers? The transformation of rural economy and society in the Low Countries (Middle Ages - 19th Century) in the light of the Brenner debate, Comparative Rural History Network (CORN), vol.04, Turnhout: Brepols, 2001, pp.158-178.
VAN DUZER, C., The history of the Azores as Insulae Solis or Islands of the Sun in the 16th-Century Cartography, Terrae Incognitae, vol.40, no.01, 2008.
ZUBER, M., The armchair discovery of the unknown southern continent: Gerardus Mercator, philosophical pretensions and a competitive trade, Early science and medicine, no.16, 2011, pp.505-541.
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ResponderExcluirAdorei, queria muito um globo celeste, lindo. Você realmente foi Indiana Jones da historia da cartografia, eu jamais saberia da existência de Mercator e Den Bosh. Maravilhoso em tempos de "Terra Plana". Gosto muito de mapa e das diversas representações, principalmente das antigas.
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