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As pequenas células cinzas em ação: analisando Agatha Christie

Quando pensei em abrir o Trama, idealizei o blog como um espaço polissêmico (e ainda quis um título que transpusesse essa pluralidade). Então espero que os leitores tenham paciência diante de mais um artigo sobre livros & autores. Certamente, esses pequenos volumes de celulose ocuparão um lugar privilegiado por aqui, por mais que a redação não se restrinja a eles. Hoje, portanto, inauguramos uma sequência de posts sobre a Rainha do Crime, com algumas reflexões sobre a obra da Agatha Christie (1890-1976)!

Christie não apenas produziu muito, como desenvolveu um estilo cativante e, como indicado nas versões de bolso da L&PM, "é a autora mais publicada de todos os tempos, superada apenas por Shakespeare e a Bíblia". (Resta saber o paradeiro de tantas edições do Shakespeare...) O sucesso no gosto popular e o estilo policial congregam 2 elementos tidos como "menores" na literatura, de modo geral. (E entender o por que dessa reputação daria um estudo - quem sabe não adentro essa vereda? aguardem. Enquanto isso, uma retrospectiva do gênero no Brasil está disponível aqui) Ao cativar leitores ao redor do mundo, por décadas, Christie se consolidou como uma escritora interessante, e, ao mesmo tempo, de leitura fácil e com soluções nem sempre "adivinháveis" para seus casos. A dinâmica e a (suposta) simplicidade do estilo aparecem como faca de dois gumes, gerando uma primeira entrada no mundo da leitura, mas sem de fato proporcionar material literário refinado. Será mesmo o caso?

Devo dizer que li uma grande quantidade de títulos da Christie no último ano do doutorado, como contraponto às obras mais pesadas pra tese, e segui pelo caminho, inclusive pela facilidade em obter mais volumes (formato de bolso providencial). E, ao longo dessas incursões, três temas principais me parecem extremamente presentes na obra, tornando-a rica em comentários (aparentemente en passant, mas dotados de profundidade) sobre as transformações do momento, pressupostos sobre hierarquia e sociedade, e a própria natureza do crime.

Como vocês podem imaginar, essas discussões estavam na ordem do dia durante o período da Belle Époque expandida, ou seja, entre o último quarto do século XIX e o primeiro do século XX. O florescer de teorias e interpretações sobre o ser humano (inclusive a psicanalítica e a sociológica) trouxe novas considerações para instituições moldadas desde fins do século XVIII, e, em especial, a polícia. Afinal, como combater algo que não se consegue definir e discernir? E no que essas novas maneiras de interpretar poderiam contribuir para uma compreensão da alma humana, que, no fundo, é o grande assunto de todo policial?

Nesse gênero literário, ao contrário de outras vertentes mais idealistas, a alma humana não contém apenas elementos positivos. Atos tidos como criticáveis não resultam de uma fraqueza diante da tentação. Pelo contrário: a fauna policial contempla uma exposição de maneirismos, percepções, limites, soluções, leituras pessoais de um todo, mudanças e permanências ao longo do tempo, procurando abranger a variedade e a constância, os pontos semelhantes entre cada um de nós, mas também resoluções particulares, com suas ambivalências, qualidades e defeitos. Nesse aspecto, a noção naturalista dos policiais nada tem de "menor" diante de outros estudos igualmente minuciosos da humanidade e suas situações, e mais, muitas vezes sem um juízo de valor direto, ou seja, sem recusar ações tidas como reprováveis como humanas.

Agatha Christie não foge a esse prazer diante da variedade humana. Mas ela vai além: em diversos momentos das obras, ela toma voz, através de um dos personagens, e procura explicar padrões de crime e criminoso; postular elementos sociais (em especial de hierarquia) e até mesmo criticar práticas tidas como modernas à época da redação - em especial, aquelas ligadas às mulheres.

Assim, veremos juntos 1. como Christie defende o crime como uma questão psicológica, mais do que um debate intelectual com o leitor a partir das pistas fornecidas (ou melhor, as pistas corretas não são as físicas, e sim aquelas relativas a personalidades dos envolvidos); 2. sua descrição fina da sociedade inglesa, em plena mudança, com uma capital fervilhante, mas cidades menores ainda mantendo hábitos mais tradicionais; e 3. a ambivalência em relação às mulheres, ora mais independentes e emancipadas, ora ativas (e também capazes de crimes a sangue-frio), ora dotadas de uma nostalgia em relação aos papéis tradicionais da mulher, em especial as nobres ou de famílias prestigiosas, cujo tratamento é muito diferente das de família e atividades simples. A questão era séria para ela a ponto de criar um pseudônimo para publicar obras mais românticas (que saíram sob o nome de "Mary Westmacott").

Talvez por um quê barroco, Agatha também apresenta a figura do "ator/atriz" com grande desconfiança ao longo da obra - talvez por se tratar de um caso capaz de agir de maneira variada, complicando as leituras a partir de uma "psicologia do crime", mas sem nunca se furtar totalmente à sua própria personalidade.

Não pretendo esgotar a obra com essa análise: apenas selecionar alguns trechos (dentre muitos possíveis) para subsidiar os pontos ali de cima e dialogar com outras teorias desenvolvidas a pleno vapor durante o período de atividade de Christie. Espero ter dado um gostinho em vocês.

(Para quem quiser uma leitura interpretada da autobiografia da Christie, a Karina Kuschnir escreveu sobre o assunto no blog dela e o texto pode ser achado aqui!)

Onde achar?
É muito fácil achar livros da Agatha Christie. Praticamente qualquer livraria com uma seção de livros de bolso, banca de jornal, ou sebo tem. Há menções a traduções da obra no Brasil desde 1930. Segundo entrevista com Tito Prates, o "embaixador" da autora no país, o Caso dos Dez Negrinhos foi publicado no Brasil em 1943. (Hoje, o título é tido como politicamente incorreto e foi substituído por "E não sobrou nenhum"). Em 2014, havia 93 títulos disponíveis no mercado [1], distribuídos por diversas editoras. (Eu mesma fui iniciada em Agatha Christie pelo Assassinato no Expresso Oriente, quando tinha uns 10 anos, pela tradicional edição da Nova Fronteira) Já a Autobiografia tem uma edição de 1977 pela Record e foi publicada várias vezes de lá pra cá.


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As capas de Assassinato no Expresso Oriente, ao longo do tempo; Nova Fronteira (1983, sem data e 1998) (Fonte). Nota: a fonte atribui a capa do meio a uma edição de 2002 da editora Altaya, mas discordo. Essa capa de fundo preto era característica da Nova Fronteira e a estética não parece do início dos anos 2000.


[1] LOURENÇO, V. As traduções de Agatha Christie no Brasil: considerações sobre a representação da oralidade e o pós-colonialismo. Mutatis Mutandis, vol. 07, no.02, 2014, pp.306-333. Disponível online em: http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5012683.pdf. Acesso em 10/02/2019.

Comentários

  1. Sensacional o texto, fiquei com sensação de "quero mais". Adoro o tema e arrasou na analise, em especial das capas do Expresso do Oriente, considero meio clássica a primeira imagem que vc postou como exemplo. Deu vontade de largar tudo e passar o rodo nas obras. Eu gostei muito do livro "Os relógios".

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